sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Um sorriso a mais


Qual seria a próxima revolução? Perguntou-se ao deixar-se sentar pesado no banco de madeira do quintal. Olhando pro céu, Osias com rugas talhadas e mãos trepidantes ainda esperava um sentido maior pras últimas gotas de vida que o fazia acordar cedo e tomar o seu remédio de hipertensão escutando as notícias que chiavam no rádio velho.
“Acabe com essa história, Osias!” – era o que costumava ouvir toda vez que vinha com aquele papo de renascimento socialista.
Osias não entendia o funcionamento do novo sistema e também pouco importava, só queria saber da rádio, notícias de um certo Ernesto armado que fazia sucesso em toda a América. Enchia o peito toda vez que falava do herói, mas depois de tanto tempo, o Che bem morto já não trazia mais glamour ao seu sonho de grandes mudanças. “Logo agora que eu chego ao fim da vida os heróis decidem morrer”, pensou Osias. Em seu tempo, os heróis não morriam e talvez tenha sido justamente este o estopim da idéia iluminada que o acometeu numa dessas noites silenciosas de ócio produtivo. Mastigando a dentadura falou aos gritos: “Vou fazer minha própria revolução!”
Apesar da quase surra que levou de Dona Ofélia, sua esposa, ao acordar a casa inteira, Osias logo pegou sua bengala e foi pro quintal arquitetar o que seria a próxima grande revolução da humanidade.
“Revolução industrial, francesa, capitalista, francesa, industrial...”
Chegou a conclusão que não sabia nada de revoluções e, desanimado, já ensaiava um falecimento sem muitos prestígios de imortalidade histórica.
“Industrial, capitalista, capitalis... capita...”
Adormeceu sentado igualzinho a todo velho. Sem absolutamente nenhuma diferença entre os tantos outros pavorosos anônimos de sua idade.
Mas Osias era diferente.
Ele ria apenas com o lado esquerdo da boca porque era a metade que ainda tinha alguns poucos heróicos dentes de verdade, ainda que amarelos. Esse sorriso era completamente feliz e ficou bem notório à medida de serrava e pregava as parafernálias que trouxera consigo do armazém, logo após ter acordado gripado, sob os primeiros raios de sol, sentado no banco duro de madeira do seu quintal.
Tinha o formato de uma asa de pombo. Digo pombo porque Osias gostava deles. Era de pombo, pois.
O homem voaria como pombos na revolução de Osias. O mundo saberia de seu nome e o céu ganharia seu rosto enrugado. O problema é que Osias não era chegado numa leitura e muito além de não saber nada sobre revoluções, o radinho nunca tinha mencionado sobre épicos fracassos de homens pássaros.
Numa tarde comum, com o auxilio do seu jeito flexível do atleta de outrora, subiu em cima do telhado com suas asas abertas. O tempo não parecia ruim e os segundos que antecederam o momento que ficaria registrado em todos os livros de ensino médio encheram o seu velho coração de algo que eu jamais saberia explicar aqui.

Aos 86 anos, Osias planou como um passarinho, sob o ar fresco de primavera, por segundos que duraram quase uma eternidade e nem sentiu quando caiu, já sem vida, no imenso jardim do quintal.
Era o seu lugar predileto e lá mesmo fora enterrado esboçando ainda o último meio sorriso e sobre o olhar apático de Dona Ofélia que, não acreditando no falecimento poético do seu esposo, repetia pra si o tempo todo: “acabe com essa história, homem de Deus, acabe com essa história...”

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