quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Prelúdio Cinza


Era uma menina e seus grandes olhos de esmeralda.
Chorando sempre sentada com o rosto entre aos joelhos.
Aquela menina transformava os hematomas em poesias.

Era um homem de mãos grandes e braços de foice.
Batia sempre sem pena, cabeça alta de vodka, coração abandonado.
Aquele homem transformava a perda em agressão.

Era uma mulher covarde e suas rugas talhadas.
Deixou pra trás o mundo de cacos, olhou sobre os ombros o homem pouco, a menina tanto.
Aquela mulher desconhecia o arrependimento cortante.

Os olhos de esmeralda cessaram as lágrimas.
Naquela noite não se permitiu escrever mais uma carta para a mulher covarde.
Colocou o pó fino na garrafa de água da geladeira, saiu de casa e dormiu na grama - sob a noite cinza - ao lado das orquídeas que levaria no dia seguinte.
Mais uma poesia que transformava. Mais um choro na morte dos segundos silenciosos.
Tinha o dom, aquela menina. Poesia nos olhos. Mãos cheirando a flores.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Smileless



O vento contra seus cabelos, em cima da moto 83, fazia daquela cena um retrato envelhecido do mundo que ele tivera antes da seriedade breve que o acometeu como um mal crônico. Não fazia questão da velocidade, porque acreditava que chegar sempre fora o início da partida e, definitivamente, não tinha mais estômago pra essas coisas. Achar que ele mesmo tinha parado no tempo era tentar esconder as rugas finas que apareciam, sem graça, no sorriso que ele dava frente ao espelho.

Pra escondê-las, portanto, teve a idéia genial de não mais sorrir. Preferiu a jovialidade ao bom humor e se tornou um jovem sério.

Do tempo que fluiu fácil, ficaram daquele comportamento algumas rugas que não podiam ser mais disfarçadas e a impossibilidade de sorrir novamente.

A gente esquece como se faz depois de um longo tempo sem achar graça nas coisas.

domingo, 15 de novembro de 2009

Mr. Tambourine


Mr. Tambourine, bem que poderia ter me dito sobre os seus sonhos, mas você sempre tão calado...
Você poderia ter me dito sobre seu sorriso na madrugada ou sua mania de usar o mesmo terno aos domingos.
Se você acreditasse no poder que tem ou mesmo soubesse da minha solidão perdida, talvez pudesse tocar uma canção enquanto o jardineiro poda as flores do seu quintal.

As ruas me chamam e eu não vejo nelas mais que a cinza poesia das pessoas sem faces.
O que fez você ao ver tudo isso?

Mr. Tambourine, não deixe seu violão mudo como os seus sonhos.
Toque uma canção pra mim...

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Um sorriso a mais


Qual seria a próxima revolução? Perguntou-se ao deixar-se sentar pesado no banco de madeira do quintal. Olhando pro céu, Osias com rugas talhadas e mãos trepidantes ainda esperava um sentido maior pras últimas gotas de vida que o fazia acordar cedo e tomar o seu remédio de hipertensão escutando as notícias que chiavam no rádio velho.
“Acabe com essa história, Osias!” – era o que costumava ouvir toda vez que vinha com aquele papo de renascimento socialista.
Osias não entendia o funcionamento do novo sistema e também pouco importava, só queria saber da rádio, notícias de um certo Ernesto armado que fazia sucesso em toda a América. Enchia o peito toda vez que falava do herói, mas depois de tanto tempo, o Che bem morto já não trazia mais glamour ao seu sonho de grandes mudanças. “Logo agora que eu chego ao fim da vida os heróis decidem morrer”, pensou Osias. Em seu tempo, os heróis não morriam e talvez tenha sido justamente este o estopim da idéia iluminada que o acometeu numa dessas noites silenciosas de ócio produtivo. Mastigando a dentadura falou aos gritos: “Vou fazer minha própria revolução!”
Apesar da quase surra que levou de Dona Ofélia, sua esposa, ao acordar a casa inteira, Osias logo pegou sua bengala e foi pro quintal arquitetar o que seria a próxima grande revolução da humanidade.
“Revolução industrial, francesa, capitalista, francesa, industrial...”
Chegou a conclusão que não sabia nada de revoluções e, desanimado, já ensaiava um falecimento sem muitos prestígios de imortalidade histórica.
“Industrial, capitalista, capitalis... capita...”
Adormeceu sentado igualzinho a todo velho. Sem absolutamente nenhuma diferença entre os tantos outros pavorosos anônimos de sua idade.
Mas Osias era diferente.
Ele ria apenas com o lado esquerdo da boca porque era a metade que ainda tinha alguns poucos heróicos dentes de verdade, ainda que amarelos. Esse sorriso era completamente feliz e ficou bem notório à medida de serrava e pregava as parafernálias que trouxera consigo do armazém, logo após ter acordado gripado, sob os primeiros raios de sol, sentado no banco duro de madeira do seu quintal.
Tinha o formato de uma asa de pombo. Digo pombo porque Osias gostava deles. Era de pombo, pois.
O homem voaria como pombos na revolução de Osias. O mundo saberia de seu nome e o céu ganharia seu rosto enrugado. O problema é que Osias não era chegado numa leitura e muito além de não saber nada sobre revoluções, o radinho nunca tinha mencionado sobre épicos fracassos de homens pássaros.
Numa tarde comum, com o auxilio do seu jeito flexível do atleta de outrora, subiu em cima do telhado com suas asas abertas. O tempo não parecia ruim e os segundos que antecederam o momento que ficaria registrado em todos os livros de ensino médio encheram o seu velho coração de algo que eu jamais saberia explicar aqui.

Aos 86 anos, Osias planou como um passarinho, sob o ar fresco de primavera, por segundos que duraram quase uma eternidade e nem sentiu quando caiu, já sem vida, no imenso jardim do quintal.
Era o seu lugar predileto e lá mesmo fora enterrado esboçando ainda o último meio sorriso e sobre o olhar apático de Dona Ofélia que, não acreditando no falecimento poético do seu esposo, repetia pra si o tempo todo: “acabe com essa história, homem de Deus, acabe com essa história...”

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Circo Particular


Eu trabalho num circo. Sou o homem que abre e fecha as cortinas. Não se tem muito o que fazer quando se é um movedor de cortinas, a não ser puxar uma cordinha e depois soltá-la toda vez que uma cena começa ou termina. Parece não ser divertido o que eu faço, mas pra mim é um grande mistério. Eu poderia viver de outros rendimentos porque sei carpintaria, mas prefiro ficar aqui observando tudo o que vejo. Conheço cada um dos personagens, tenho até decorado a fala deles de tantas vezes que já assisti ao espetáculo. Estranho é saber que aqui existem apenas interpretações. Quando as luzes se apagam, por trás da cortina percebo que o espetáculo acaba de começar. Cada personagem volta a seu normal. É assim todas as noites. O domador abre um sorriso infantil ao se conciliar com Golias, o leão. O equilibrista magrelo se embriaga com os últimos goles de vodka e o palhaço, já com a maquiagem desbotada, se preocupa com as contas do mês e acende um cigarro olhando pro céu.

Essa magia da noite circense é o meu mundo, a magia que poucos conhecem. O barulho das risadas foi substituído pelo canto dos grilos intercalado ao som metálico da estrutura do palco sendo desmontada. Não se vê flashes e o pipoqueiro se despede contando o que deu pra arrecadar na noite. As maçãs-do-amor que sobraram perdem o brilho no escuro. Atrás dessa cortina vejo o mundo tomando as formas de um anjo negro ao cair da madrugada. As últimas luzes se apagam, deixando na completa escuridão o circo dentro de cada um de nós. Quando eu fecho as cortinas, o espetáculo maior começa, ao som das palmas daqueles que pensam ter assistido a ele.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Silêncio Negro


Eu escrevo sem saber bem o que dizer. Na verdade, só escrevo mesmo por não ter muito a falar. O silêncio se tornou freqüente em minha vida. São coisas que tenho aprendido a conviver e tenho me saído bem. Tento compreender o motivo que me trouxe até aqui, mas desconsidero logo por dar muito trabalho e ando cansado demais. Tenho dormido muito também. É o refúgio pros pensamentos que não me deixam fazer outra coisa senão tentar fugir deles. Minha barba está grande e faz duas semanas que não saio de casa. Faz tempo que não vejo o sol, porque já tomei a atitude de lançar panos e cortinas em todas as frestas por onde ele poderia entrar. As janelas ficam sempre fechadas, de modo que no meu mundo é sempre noite. Não há estrelas, porém. Acabei me acostumando e hoje penso nelas apenas como pontos piegas que propiciam a melancolia dos namorados. Sinto falta apenas da minha sombra, ela era o retrato mais fiel que eu pude enxergar, porque o espelho não reflete no escuro, deixa ver apenas uma penumbra que não sei ao certo se é minha imaginação que monta a imagem. Tenho escutado vozes ultimamente, mas suponho que seja a do carteiro que sempre bate à porta tentando me entregar notícias do mundo que não é o meu. Não atendo e ele logo desiste.

Desanimo, porque tenho tentado ser louco, mas a loucura é distante demais.
Reconsidero, porque tenho tentado ser lúcido, mas a lucidez parece não me querer.

Vivo por fim, bem no meio do caminho entre a loucura e a lucidez, com as frestas sempre tapadas impedindo que o sol me toque, impedindo que o vento traga novidades pro meu mundo, pras minhas noites. Sem estrelas.


quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Like a Rolling Stone


O tempo, que jamais cessa as cobranças, traz consigo um sentimento traiçoeiro (escondido) de querer mascarar as faces tão feias do real. A navalha cega da ilusão abre espaços enferrujando a carne ainda trêmula, cheia de memórias que nunca envelhecem. O peito tímido se encolhe em cada esquina como se tentasse evitar a mais humilhante exposição de si mesmo, retraindo até as mais frias certezas do que realmente é. A verdade caolha, ainda enxerga e sente com dificuldade o óbvio peso sobre sua coluna tão frágil e, infeliz por não conseguir transformar o grito em melodia, apaga a luz do abajur e dorme sem sonhos.


O tempo é o vilão dos sentidos sobre a ribalta que só os heróis merecem. Afinando tambores para uma platéia alienada, ele sempre esquece quando acaba o carnaval e mantêm a máscara sobreposta a tudo que é capaz de tocar. Seguindo ladeira abaixo, sem acordes, sem tambores, assobiando velhas marchinhas que supõe alegrias infindas.