terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

E agora, José?


No país da fantasia aquela sempre fora a festa mais animada do ano. As ruas eram tomadas por uma alegria como se na quarta-feira fosse o fim dos tempos e não de apenas mais um reinado de Momo. Começava ainda na sexta-feira com a noite dos tambores que emudeciam aos poucos no ponto onde a cidade havia nascido. Depois disso só se via as pessoas tentando ser felizes por todos os cantos da cidade. Era como compensar uma vida sem confetes que levava durante os demais dias do ano. O frevo vinha sempre curar as feridas, onde o rei fazia estripulia para a diversão do bobo da corte, que sempre estranhava tudo aquilo.
No auge da terça-feira, os corações apertados já sorriam com preocupação pelo raiar da manhã que traria o fim de mais um carnaval. O dia de cinzas era talvez o mais triste do ano. Havia até os que consideravam pior que as manhãs de Natal sem presente.

O cansaço nos corpos daquelas pessoas era apenas mais uma artimanha das ladeiras da cidade velha, como uma Colombina que maltrata o Pierrot apenas para se certificar do seu amor.

O carnaval passou no país da fantasia.

Aos poucos, tudo voltava ao normal.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Ó! Quanta alegria...


Quem me vê sempre parado, distante garante que eu não sei sambar
Eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando e não posso falar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

E quem me ofende, humilhando, pisando, pensando que eu vou aturar
E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

Eu vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar
Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

Chico Buarque

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Prelúdio Cinza


Era uma menina e seus grandes olhos de esmeralda.
Chorando sempre sentada com o rosto entre aos joelhos.
Aquela menina transformava os hematomas em poesias.

Era um homem de mãos grandes e braços de foice.
Batia sempre sem pena, cabeça alta de vodka, coração abandonado.
Aquele homem transformava a perda em agressão.

Era uma mulher covarde e suas rugas talhadas.
Deixou pra trás o mundo de cacos, olhou sobre os ombros o homem pouco, a menina tanto.
Aquela mulher desconhecia o arrependimento cortante.

Os olhos de esmeralda cessaram as lágrimas.
Naquela noite não se permitiu escrever mais uma carta para a mulher covarde.
Colocou o pó fino na garrafa de água da geladeira, saiu de casa e dormiu na grama - sob a noite cinza - ao lado das orquídeas que levaria no dia seguinte.
Mais uma poesia que transformava. Mais um choro na morte dos segundos silenciosos.
Tinha o dom, aquela menina. Poesia nos olhos. Mãos cheirando a flores.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Smileless



O vento contra seus cabelos, em cima da moto 83, fazia daquela cena um retrato envelhecido do mundo que ele tivera antes da seriedade breve que o acometeu como um mal crônico. Não fazia questão da velocidade, porque acreditava que chegar sempre fora o início da partida e, definitivamente, não tinha mais estômago pra essas coisas. Achar que ele mesmo tinha parado no tempo era tentar esconder as rugas finas que apareciam, sem graça, no sorriso que ele dava frente ao espelho.

Pra escondê-las, portanto, teve a idéia genial de não mais sorrir. Preferiu a jovialidade ao bom humor e se tornou um jovem sério.

Do tempo que fluiu fácil, ficaram daquele comportamento algumas rugas que não podiam ser mais disfarçadas e a impossibilidade de sorrir novamente.

A gente esquece como se faz depois de um longo tempo sem achar graça nas coisas.

domingo, 15 de novembro de 2009

Mr. Tambourine


Mr. Tambourine, bem que poderia ter me dito sobre os seus sonhos, mas você sempre tão calado...
Você poderia ter me dito sobre seu sorriso na madrugada ou sua mania de usar o mesmo terno aos domingos.
Se você acreditasse no poder que tem ou mesmo soubesse da minha solidão perdida, talvez pudesse tocar uma canção enquanto o jardineiro poda as flores do seu quintal.

As ruas me chamam e eu não vejo nelas mais que a cinza poesia das pessoas sem faces.
O que fez você ao ver tudo isso?

Mr. Tambourine, não deixe seu violão mudo como os seus sonhos.
Toque uma canção pra mim...

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Um sorriso a mais


Qual seria a próxima revolução? Perguntou-se ao deixar-se sentar pesado no banco de madeira do quintal. Olhando pro céu, Osias com rugas talhadas e mãos trepidantes ainda esperava um sentido maior pras últimas gotas de vida que o fazia acordar cedo e tomar o seu remédio de hipertensão escutando as notícias que chiavam no rádio velho.
“Acabe com essa história, Osias!” – era o que costumava ouvir toda vez que vinha com aquele papo de renascimento socialista.
Osias não entendia o funcionamento do novo sistema e também pouco importava, só queria saber da rádio, notícias de um certo Ernesto armado que fazia sucesso em toda a América. Enchia o peito toda vez que falava do herói, mas depois de tanto tempo, o Che bem morto já não trazia mais glamour ao seu sonho de grandes mudanças. “Logo agora que eu chego ao fim da vida os heróis decidem morrer”, pensou Osias. Em seu tempo, os heróis não morriam e talvez tenha sido justamente este o estopim da idéia iluminada que o acometeu numa dessas noites silenciosas de ócio produtivo. Mastigando a dentadura falou aos gritos: “Vou fazer minha própria revolução!”
Apesar da quase surra que levou de Dona Ofélia, sua esposa, ao acordar a casa inteira, Osias logo pegou sua bengala e foi pro quintal arquitetar o que seria a próxima grande revolução da humanidade.
“Revolução industrial, francesa, capitalista, francesa, industrial...”
Chegou a conclusão que não sabia nada de revoluções e, desanimado, já ensaiava um falecimento sem muitos prestígios de imortalidade histórica.
“Industrial, capitalista, capitalis... capita...”
Adormeceu sentado igualzinho a todo velho. Sem absolutamente nenhuma diferença entre os tantos outros pavorosos anônimos de sua idade.
Mas Osias era diferente.
Ele ria apenas com o lado esquerdo da boca porque era a metade que ainda tinha alguns poucos heróicos dentes de verdade, ainda que amarelos. Esse sorriso era completamente feliz e ficou bem notório à medida de serrava e pregava as parafernálias que trouxera consigo do armazém, logo após ter acordado gripado, sob os primeiros raios de sol, sentado no banco duro de madeira do seu quintal.
Tinha o formato de uma asa de pombo. Digo pombo porque Osias gostava deles. Era de pombo, pois.
O homem voaria como pombos na revolução de Osias. O mundo saberia de seu nome e o céu ganharia seu rosto enrugado. O problema é que Osias não era chegado numa leitura e muito além de não saber nada sobre revoluções, o radinho nunca tinha mencionado sobre épicos fracassos de homens pássaros.
Numa tarde comum, com o auxilio do seu jeito flexível do atleta de outrora, subiu em cima do telhado com suas asas abertas. O tempo não parecia ruim e os segundos que antecederam o momento que ficaria registrado em todos os livros de ensino médio encheram o seu velho coração de algo que eu jamais saberia explicar aqui.

Aos 86 anos, Osias planou como um passarinho, sob o ar fresco de primavera, por segundos que duraram quase uma eternidade e nem sentiu quando caiu, já sem vida, no imenso jardim do quintal.
Era o seu lugar predileto e lá mesmo fora enterrado esboçando ainda o último meio sorriso e sobre o olhar apático de Dona Ofélia que, não acreditando no falecimento poético do seu esposo, repetia pra si o tempo todo: “acabe com essa história, homem de Deus, acabe com essa história...”

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Circo Particular


Eu trabalho num circo. Sou o homem que abre e fecha as cortinas. Não se tem muito o que fazer quando se é um movedor de cortinas, a não ser puxar uma cordinha e depois soltá-la toda vez que uma cena começa ou termina. Parece não ser divertido o que eu faço, mas pra mim é um grande mistério. Eu poderia viver de outros rendimentos porque sei carpintaria, mas prefiro ficar aqui observando tudo o que vejo. Conheço cada um dos personagens, tenho até decorado a fala deles de tantas vezes que já assisti ao espetáculo. Estranho é saber que aqui existem apenas interpretações. Quando as luzes se apagam, por trás da cortina percebo que o espetáculo acaba de começar. Cada personagem volta a seu normal. É assim todas as noites. O domador abre um sorriso infantil ao se conciliar com Golias, o leão. O equilibrista magrelo se embriaga com os últimos goles de vodka e o palhaço, já com a maquiagem desbotada, se preocupa com as contas do mês e acende um cigarro olhando pro céu.

Essa magia da noite circense é o meu mundo, a magia que poucos conhecem. O barulho das risadas foi substituído pelo canto dos grilos intercalado ao som metálico da estrutura do palco sendo desmontada. Não se vê flashes e o pipoqueiro se despede contando o que deu pra arrecadar na noite. As maçãs-do-amor que sobraram perdem o brilho no escuro. Atrás dessa cortina vejo o mundo tomando as formas de um anjo negro ao cair da madrugada. As últimas luzes se apagam, deixando na completa escuridão o circo dentro de cada um de nós. Quando eu fecho as cortinas, o espetáculo maior começa, ao som das palmas daqueles que pensam ter assistido a ele.